terça-feira, 4 de novembro de 2014

DIREITO DE PROPRIEDADE - PARTE I



PROPRIEDADE

1.      Breve Histórico da Propriedade.

1.1.Considerações iniciais

Afinal, que inventou esse terrível direito[1]? No dizer de Paulo Luiz de Netto Lôbo, “a propriedade é o grande foco de tensão entre as correntes individualistas e os solidaristas.[2]” A perspectiva cética quanto ao direito de propriedade também se faz presente na obra o “Discurso sobre as Ciências e as Artes e Sobre a Origem da Desigualdade de Jean Jacques Rosseau. Em certa passagem, Rousseal chega a dizer:

“O primeiro que, tendo cercado um terreno, se lembrou de dizer: isto é meu, e encontrou pessoas bastante simples para acreditá-lo, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacadas ou tapando os buracos, tivesse gritado aos seus semelhantes: ‘Livrai-nos de escutar esse impostor; estarei perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos, e a terra de ninguém.”

1.2.Propriedade no Direito Romano

De acordo com Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, “os romanos não qualificaram a propriedade como jus in re, apenas descreveram as suas funções[3].” Os mencionados autores, com apoio em Maria Cristina Pezella, também contam que em Roma, ao contrário do que se costuma afirmar, o direito de propriedade estava submisso ao atendimento do interesse social[4].

No entanto, este viés “socializado” do direito de propriedade romana não permaneceu na Idade Média, já que o poder político e absoluto do senhor feudal não podia sofrer qualquer restrição.

1.3.Propriedade na Idade Média

Os primeiros anos do período medieval são marcados pela fragmentação política, diante da ausência de um poder central (Estado), e pelo desaparecimento quase completo do comércio, já que a economia se baseava na relação de subordinação entre vassalo e senhor feudal (uma porção de terra para cultivo e subsistência em troca de proteção militar, respeito e fidelidade).

1.4.Propriedade no Século VIII e XIX

Devido à notável influência do iluminismo e do jusnaturalismo, uma ideologia liberal e individualista surgiu neste contexto histórico e foi decisiva para moldar o formato clássico do direito de propriedade. Assim, diferentemente do período medieval, o período das revoluções burguesas é extremamente propício à circulação do capital e das riquezas. Neste cenário, desponta a importância da vontade “livre” daquele que pratica um ato jurídico. 

Dessa forma, a autonomia privada é valorizada, pois o acesso aos bens depende única e exclusivamente da vontade do titular. Por isso se diz que “a propriedade será alcançada segunda a capacidade e o esforço de cada um e, na forma da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, terá a garantia da exclusividade dos poderes de seu titular, como asilo inviolável e sagrado do indivíduo.[5]

A importância do jusnaturalismo foi a de que a propriedade foi reconhecida como um direito inato ao ser humano e que deve ser protegido pelo Estado. Aliás, a respeito das funções do ente estatal, é elucidativa a comparação com o “guarda noturno”, já que ao Estado só competia a proteção da segurança e da propriedade. Em síntese, a “função do Estado mínimo consistia apenas em propiciar segurança e tranqüilidade ao Cidadão”

Daí que, para o Código Francês de 1.804, “a propriedade era considerada um fato econômico de utilização exclusiva da coisa.[6]” Não é para menos, então, que este diploma também é conhecido por ser um “Código das Coisas”, e não das pessoas.

Segundo o art. 544 do Código Napoleônico, propriedade é o “direito de gozar e dispor das coisas da maneira mais absoluta, desde que delas não se faça uso proibido pelas leis e regulamentos.” Caio Mario não poupa críticas ao conceito, dizendo que o termo absoluto não comporta gradação. Não existe mais ou menos absoluto. Ou é absoluto ou é relativo.[7]

Também imerso no paradigma liberal, surgiu o Código Alemão (BGB – burgelischesgezetsbuch), de 1.900, que, apesar do rigor técnico e científico, não contribuiu para o rompimento da noção individualista da propriedade. Afirma-se mesmo que “o cientificismo do Código alemão neutralizou qualquer ruptura ideológica com a lógica proprietária inaugurada 100 anos antes.[8]

1.5.Propriedade no Brasil  

Diversamente do que se passou na Europa, o Brasil não vivenciou a experiência do feudalismo. Sendo assim, o histórico da propriedade, especialmente a imobiliária, começou com a progressiva incorporação de imóveis públicos na esfera privada. Na verdade, os particulares passaram a ocupar gradualmente os imóveis pertencentes à coroa portuguesa pela via da usucapião, cartas de sesmarias[9] e posses sobre terras devolutas, o que acarretou uma concentração de grandes porções de terras na posse de um pequeno número de pessoas (formação dos latifúndios).

O Código Civil de 1916 foi “um filho tardio do liberalismo”, fruto de uma concepção individualista que concedeu primazia às situações jurídicas patrimoniais. Naquele contexto, três eram os protagonistas do Direito Civil: proprietário, o credor e o marido.

O importante era a preservação da propriedade no núcleo familiar. Para tanto, o direito armava-se com regras que excluíam quaisquer direitos aos filhos concebidos fora do casamento; pela mesma lógica, a mulher era considerada relativamente incapaz, e dependia da assistência do marido para os atos civis em geral. Por fim, a administração dos bens competia exclusivamente ao marido.

Em meio àquele arcabouço de normas de proteção da propriedade, despontava a redação do artigo 524 do Código Civil de 1916, já previsto no esboço de Teixeira de Freitas e que foi aproveitado por Clóvis Beviláqua: “a lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que, injustamente, os possua.”

Por sua vez, o Código Civil de 2002, no artigo 1.228 praticamente repetiu a redação do artigo 524 do CC/16, razão pela qual recebe as mesmas críticas. Como se vê, não se trata propriamente de um conceito de propriedade, mas sim da descrição de seus poderes ou faculdades – uso, gozo, disposição e reivindicação - (uma enumeração das faculdades, para ser mais exato).

Trata-se, portanto, de um conceito estático que aprisiona o significado a um só tipo de propriedade, e que se mostra completamente alheio ao ideal de cumprimento da função social.

2.      Conceito e Extensão da Propriedade (art. 1.228)

Diante da tarefa de conceituar o instituto, Flavio Tartuce abre o capítulo sobre a propriedade, trazendo o conceito apresentado por vários autores de referência no Brasil, o que demonstra não ser nada simples tal proposta:
à Clóvis Beviláqua conceitua a propriedade como sendo o poder assegurado pelo grupo social à utilização dos bens da vida física e moral.34
à Caio Mário da Silva Pereira leciona: “Direito real por excelência, direito subjetivo padrão, ou ‘direito fundamental’ (Pugliatti, Natoli, Plainol, Ripert e Boulanger), a propriedade mais se sente do que se define, à luz dos critérios informativos da civilização romano-cristã. A ideia de ‘meu e teu’, a noção do assenhoreamento de bens corpóreos e incorpóreos independe do grau de cumprimento ou do desenvolvimento intelectual. Não é apenas o homem do direito ou o business man que a percebe. Os menos cultivados, os espíritos mais rudes, e até crianças têm dela a noção inata, defendem a relação jurídica dominial, resistem ao desapossamento, combatem o ladrão. Todos ‘sentem’ o fenômeno propriedade”. (...). “A propriedade é o direito de usar, gozar e dispor da coisa, e reivindicá-la de quem injustamente a detenha”.35
à Para Orlando Gomes, a propriedade é um direito complexo, podendo ser conceituada a partir de três critérios: o sintético, o analítico e o descritivo. Sinteticamente, para o jurista baiano, a propriedade é a submissão de uma coisa, em todas as suas relações jurídicas, a uma pessoa. No sentido analítico, ensina o doutrinador que a propriedade está relacionada com os direitos de usar, fruir, dispor e alienar a coisa. Por fim, descritivamente, a propriedade é um direito complexo, absoluto, perpétuo e exclusivo, pelo qual uma coisa está submetida à vontade de uma pessoa, sob os limites da lei.36
à Maria Helena Diniz define a propriedade como sendo “o direito que a pessoa física ou jurídica tem, dentro dos limites normativos, de usar, gozar, dispor de um bem corpóreo ou incorpóreo, bem como de reivindicá-lo de quem injustamente o detenha”.37
à Segundo Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald “a propriedade é um direito complexo, que se instrumentaliza pelo domínio, possibilitando ao seu titular o exercício de um feixe de atributos consubstanciados nas faculdades de usar, gozar, dispor e reivindicar a coisa que lhe serve de objeto (art. 1.228 do CC)”.[10]
Como se pode notar, realmente o Código Civil não define a propriedade, mas sim enuncia o atributos ou faculdades do domínio. (art. 1.228). Mesmo assim, para alguns autores, como Caio Mario, não há melhor definição, daí que a propriedade pode ser conceituada como “o direito de usar, gozar e dispor da coisa, e reivindicá-la de quem injustamente a detenha”[11]

Segundo Caio Mario, o conceito não é perfeito, mas é difícil encontrar melhor definição. O conceito de Clóvis Bevilaqua, por exemplo (“o poder assegurado pelo grupo social à utilização dos bens da vida psíquica e moral”), apesar de apresentar fórmula elevada e formosa, “não esclarece o conteúdo do fenômeno, quer jurídica, quer economicamente.”

O mesmo se passa com o conceito de Tito Fulgêncio (“Chama-se propriedade o direito que tem uma pessoa de tirar diretamente de uma coisa toda a sua utilidade jurídica.”). De acordo com Caio Mario, o conceito é elegante na forma, mas peca, todavia, pela deficiência ao omitir em que consistiria aquela utilidade jurídica, deixando assim de revelar o conteúdo desse direito.

Apesar dos diferentes enfoques, existe um em específico que me parece ser mais esclarecedor para um estudo inicial. Assim, pode-se distinguir duas relações:

è  Como direito complexo entre o titular e a coletividade
è  Como uma relação de poder entre o proprietário e o respectivo bem.

A primeira acepção trata da relação jurídica entre o titular e toda a coletividade, que figura na posição de sujeito passivo universal para uma das vertentes da teoria monista ou personalista sobre a natureza jurídica dos direitos reais. Assim, como visto na unidade introdutória, a coletividade tem o dever geral de abstenção para não violar o direito exclusivo de propriedade.

No entanto, como a propriedade não é mais vista tão somente como um direito, mas sobretudo como um dever, um dever de cumprir a função social (direito-dever), o titular também precisa dar uma destinação socioeconômica ao bem, que possa ser útil à coletividade.

Além disso, por vezes o proprietário tem de sujeitar-se à restrições das mais diversas naturezas, como as impostas pelas Administração Pública em benefício da coletividade, como aquelas impostas para a preservação do meio ambiente etc.

Dessa forma, levando-se em conta esses fatores, diz-se que a propriedade é um direito subjetivo complexo, pois envolve um conjunto de direitos, deveres, ônus e sujeições.

Por outro lado, é possível identificar outro sentido para se definir o conceito de propriedade, que se refere à relação de poder estabelecida diretamente entre o titular e o respectivo bem. Assim, o proprietário tem o poder ou a faculdade de usar, gozar e dispor e, na hipótese de violação desse poder de fato por parte de terceiros, surge o poder de reivindicar a coisa de quem injustamente a possua ou detenha.

Deste modo, pode-se dizer que a relação entre titular e coletividade é o próprio direito de propriedade (relação jurídica horizontal), enquanto que a domínio é o poder material exercido sobre o bem (relação de domínio ou vertical).

Outro não é o entendimento de Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, segundo os quais a propriedade é uma “relação jurídica complexa formada entre o titular do bem e a coletividade de pessoas.[12]” Um pouco antes dessa definição, os citados autores enfatizam que o “direito subjetivo de propriedade concerne à relação jurídica complexa que se forma entre aquele que detém a titularidade formal do bem (proprietário) e a coletividade de pessoas”, sendo que o objeto desta relação é representado pelo “dever geral de abstenção, que consiste na necessidade de os não proprietários respeitarem o exercício da situação de ingerência econômica do titular sobre a coisa. [13]

Por sua vez, o domínio é a relação material de submissão direta e imediata da coisa ao poder de seu titular, que se exterioriza mediante o exercício dos poderes ou faculdades de uso, gozo e fruição.

Por fim, a pretensão reivindicatória surge quando da violação do direito subjetivo por terceiros, o que abre margem para o exercício do direito de seqüela.

Titular                                                        coletividade                                       
 




          (relação de poder imediato sobre a coisa - domínio)
         




Bem

3.      Atributos ou Faculdades do Direito de Propriedade

a)      Uso (ius utendi)

Consiste na faculdade de colocar a coisa a serviço do titular, sem modificação na sua substância. O dono a emprega no seu próprio benefício, ou no de terceiro. Serve-se da coisa. Mas é claro que também pode deixar de usá-la, guardando-a ou mantendo-a inerte. Usar não é somente extrair efeito benéfico, mas também ter a coisa em condições de servir.
Daí o conceito de que o poder de uso se traduz no direito que o proprietário tem de se servir da coisa ou de tê-la à sua disposição.
Porém, utilizá-la civiliter, uma vez que o uso se subordina às normas da boa vizinhança (v. nº 320, infra) e é incompatível com o “abuso do direito de propriedade”. Subordinando, o parágrafo segundo do art. 1.228 do Código de 2002, a propriedade à teoria do abuso do direito, veda o exercício da propriedade dirigido no propósito de ser nocivo a outrem.
Nota-se que o parágrafo fala em “intenção de prejudicar”. A pesquisa subjetiva seria inócua, mas o que se deve entender aqui é que a ordem jurídica reprime a conduta lesiva, ainda que abstratamente fundada no direito de propriedade.
Modernamente o Direito Positivo cada vez mais restringe as prerrogativas dominiais, ora limitando a utilização, ora impondo-a em benefício da coletividade. Assim, o Código de 2002 proclama, no parágrafo primeiro do mesmo artigo 1.228, que a propriedade deve ser exercida em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais.
Neste particular, a ausência do uso de fato, pode permitir, através de diversos mecanismos redistributivos, a perda do direito de uso, como ocorre na desapropriação para fins de reforma agrária (art. 184, CR/88) ou no direito de preferência que assiste ao locatário, nos termos do artigo 27 e ss. da Lei 8.245/91.
São ideias de certa forma fluidas, vagando ao sabor das convicções dos entendimentos subjetivos. Contudo, nesta submissão sobreleva o conceito de função social, mais determinável pelo aspecto negativo, de sorte que o dominus não faça de seu direito um instrumento de opressão, nem leve o seu exercício a extrair benefícios exagerados, em contraste com a carência circunstante.
O que se combate é a inércia do proprietário e a subutilização da propriedade, como se vê na hipótese de arrecadação de bens vagos, pelo poder público, como dispõe o artigo 1.276[14].
Outro ponto interessante é que a faculdade de uso pode ser destacada para formar um novo direito real independente, denominado direito de uso (art. 1.225, V), que está regulado nos artigos 1.412 a 1.413, apresentando um regime jurídico próprio a ser visto adiante.
b)     Gozo ou Fruição (ius fruendi)

Para Flávio Tartuce, trata-se da faculdade de retirar os frutos da coisa, que podem ser naturais(frutas, crias de animais), industriais (automóveis de uma linha de montagem) ou civis, estes últimos também chamados de rendimentos (alugueis, juros). Exemplificando, o proprietário de um imóvel urbano poderá locá-lo a quem bem entender, o que representa exercício direto da propriedade.

Entenda-se por frutos os bens acessórios que se renovam periodicamente, a partir de uma força intrínseca da coisa principal, dita frugívera.[15]

No mesmo sentido, Caio Mario afirma que o ius fruendi “realiza-se essencialmente com a percepção dos frutos, sejam os que da coisa naturalmente advêm (quidquid nasci et renasci solet), como ainda os frutos civis. A fruição, em termos de precisão linguística, distingue-se do uso, e já o Direito Romano admitia a estipulação destacada: si fructus sine usu obtigerit stipulatio locum hadebit. A linguagem corrente, mesmo jurídica, emprega a expressão em sentido mais abrangente, inserindo no direito de gozar o de usar, tendo em vista a normalidade lógica do emprego da coisa, cuja fruição habitualmente envolve a utilização. Pode-se, igualmente, pressupor no gozo a utilização dos produtos da coisa, além dos frutos, embora uns e outros se diferenciem.”

Neste compasso, Álvaro Villaça de Azevedo afirma que o ius fruendi (do verbo latino fruor, que significa retirar os frutos) “relaciona-se com o poder que tem o proprietário de colher os frutos naturais e civis produzidos pela coisa, explorando-a economicamente, inclusive extraindo dela seus produtos.[16]

Dessa forma, os frutos e produtos, ainda que separados, são do proprietário do bem principal, salvo se, por preceito especial, couberem a outrem, na forma do artigo 1.232.

Contudo, cabe advertir que a extração dos frutos naturais traduz o exercício do direito de uso, não de fruição, nos termos do artigo 1.412 do Código Civil.[17]

c)      Disposição (Ius Abutendi)

O ius abutendi, no sentido de disponendi, envolve a disposição material que raia pela destruição (De Page) como a jurídica, isto é, o poder de alienar a qualquer título – doação, venda, troca; quer dizer ainda consumir a coisa, transformá-la, alterá-la; significa ainda destruí-la, mas somente quando não implique procedimento antissocial.
Em suma: dispor da coisa vai dar no fato de atingir a sua substância, uma vez que no direito a esta reside a essência mesma do domínio.28 Mas envolve, ainda, o poder de gravá-la de ônus ou submetê-la ao serviço alheio.
No Código civil francês este poder tem realce, como se nota na redação do artigo 544 (“a propriedade é o direito de fruir e de dispor das coisas da maneira a mais absoluta”). O caráter absoluto, na verdade, representa uma reação contra o antigo regime, quando este direito era restrito a determinadas classes, como nobreza e o clero.
Com base nisso, pode-se dizer que a faculdade de dispor do bem compreende os atos de disposição material da coisa, como ocorre no consumo, na transformação, no abandono, na destruição do bem etc, além dos atos de disposição jurídica da coisa, os quais, por sua vez, se subdividem em atos de disposição total (alienação), gratuita (doação) ou onerosa (compra e venda), e atos de disposição parcial (inserção de ônus reais) de uso (servidões, usufruto, uso e habitação) e garantia (penhor, hipoteca, anticrese e alienação fiduciária).
Com relação à faculdade de abandono do bem, o elemento crucial a ser demonstrado é a intenção do titular no sentido de abdicar da sua condição de proprietário da coisa, que passará a ser uma res derelicta. Neste sentido, um exemplo bem claro disso é a situação prevista no artigo 1.276, que permite ao poder público arrecadar imóvel urbano ou rural abandonado.
No caso, a intenção de abandono é presumida, de modo absoluto, quando o proprietário, além de manter-se inerte, deixa de pagar os impostos reais que incidem sobre a coisa. De acordo com o art. 1.276:
Art. 1.276. O imóvel urbano que o proprietário abandonar, com a intenção de não mais o conservar em seu patrimônio, e que se não encontrar na posse de outrem, poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar, três anos depois, à propriedade do Município ou à do Distrito Federal, se se achar nas respectivas circunscrições.
§ 1o O imóvel situado na zona rural, abandonado nas mesmas circunstâncias, poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar, três anos depois, à propriedade da União, onde quer que ele se localize.
§ 2o Presumir-se-á de modo absoluto a intenção a que se refere este artigo, quando, cessados os atos de posse, deixar o proprietário de satisfazer os ônus fiscais.

A princípio, a disposição do artigo 1.276 pode sugerir inconstitucionalidade, na medida em que se aproxima a uma hipótese de confisco de bens, o que é vedado pela Constituição, salvo hipóteses excepcionais, como a das terras que servirem para o cultivo de drogas, e agora, com a Emenda Constitucional nº 81/2014, que servirem para a exploração do trabalho escravo (art. 150, IV e art. 243, ambos da CR/88).[18]
d)     Reivindicação (Rei Vindicatio)

Esse direito será exercido por meio de ação petitória, fundada na propriedade, sendo a mais comum a ação reivindicatória, principal ação real fundada no domínio (rei vindicatio). Nessa demanda, o autor deve provar o seu domínio, oferecendo prova da propriedade, com o respectivo registro e descrevendo o imóvel com suas confrontações.

A ação petitória não se confunde com as ações possessórias, sendo certo que nestas últimas não se discute a propriedade do bem, mas a sua posse. Prevalece o entendimento de imprescritibilidade dessa ação (por todos: STJ, REsp 216.117/RN, Terceira Turma, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 03.12.1999, DJ 28.02.2000, p. 78).

O caput do art. 1.228 do CC possibilita expressamente que a ação reivindicatória seja proposta contra quem injustamente possua ou detenha a coisa. O exemplo típico envolve a ação proposta contra um caseiro, que ocupa o imóvel em nome de um invasor (injusto possuidor).

Pela vindicatio o proprietário vai buscar a coisa nas mãos alheias, vai retomá-la do possuidor, vai recuperá-la do detentor. Não de qualquer possuidor ou detentor, porém, daquele que a conserva sem causa jurídica, ou a possui injustamente.

4.      Diversos Perfis de Propriedade

O conceito do artigo 1.228 é muito criticado, pois não se atenta aos diversos perfis de propriedade, que não recai somente sobre bens tangíveis ou corpóreos, mas sim e fundamentalmente sobre bens imateriais. Afirma-se mesmo que “nos últimos cem anos a propriedade se dispersou em valores patrimoniais, destacadamente pelo capital. Incorporou-se ao dinheiro, conhecimento e bens intangíveis.[19]

Hoje os bens de raiz não são indicadores tão expressivos de riqueza se comparados a outros bens imateriais valiosos no mercado, como as patentes, as marcas, os programas de computador, as ações e demais valores mobiliários etc. Apenas para se ter uma ideia, a Microsoft, em 1999, alcançou o posto de empresa mais valiosa do mundo. Mas enquanto seus ativos reais somavam cerca de 11 bilhões e o seu faturamento atual atingia a cifra de 15 bilhões, o valor de mercado da companhia somava nada menos que 614 bilhões de dólares. Ou seja: este sobrevalor é o que se denomina benefício de mercado ou goodwill of trade, um bem imaterial tão valioso que, em alguns casos, supera o P.IB de muitos países.

 Outro exemplo notável é o da marca Coca Cola que há pouco tempo foi avaliada em 65 bilhões de dólares.[20] Ou seja: não é por outro motivo que se afirma que “no mundo pós-moderno, a propriedade se desloca da posse para o crédito.[21]” A afirmativa realmente procede, pois basta pensar no processo de desmaterialização dos títulos de crédito (não se fala mais na posse de documentos cartulares, mas sim de títulos criados e custodiados em câmaras de liquidação e custódia – títulos virtuais).

De tal forma em que é possível conceber um gênero “propriedade” que engloba uma propriedade em sentido estrito (stricto sensu) de bens corpóreos (móveis e imóveis) e uma titularidade de recai sobre outras situações jurídicas patrimoniais, como bens imateriais e direitos.

De fato, as principais regras sobre bens imateriais estão previstas em leis especiais, como ocorre com a Lei nº 9.279/97 (Marcas e Patentes), a Lei nº 9.610/98 (Direitos Autorais), Lei 9.609/98 (Lei do Software).

O Código civil se limita a dispor sobre a propriedade das coisas, bens corpóreos. No entanto, a própria Constituição estende a proteção a todos os bens que podem ser objeto de propriedade em sentido amplo, como o faz no artigo 5º, incisos XXXVII, XXXVIII e XIX.

Portanto, a crítica que se faz é contra esta concepção unitária de propriedade, adotada pelo Código Civil, que se limita a descrever a propriedade pelos poderes inerentes ao domínio. Este conceito “apenas reforça o discurso conservador de tutela dos interesses individuais do titular, sem atentar para os diversos perfis da propriedade e as múltiplas formas de utilização de bens.[22]

Melhor seria dizer, portanto, em propriedades, num sentido geral, para englobar todas as manifestações do fenômeno jurídico. Assim, falar em “propriedades” e não em propriedade simplesmente é o mesmo que dizer Direito Das Famílias e não Direito de Família, pois, como se sabe, existe uma pluralidade de formas de arranjo familiar e não apenas a família que resulta dos laços matrimoniais.

4.1. A Titularidade Intelectual

Esta categoria específica de propriedade é caracterizada por ter como objeto as criações do intelecto humano. Essas criações, em um sentido amplo, abrangem tanto as obras artísticas, literárias e científicas, como as marcas, as invenções, os modelos de utilidade e os desenhos industriais.

Aponta-se que a proteção a esses direitos teve início na Inglaterra, com o “Statute Of Anne” em 1.709, justamente pela necessidade que se teve de estimular o desenvolvimento tecnológico do país.

Hoje, as criações intelectuais representam ativos valiosíssimos dentro do sistema capitalista, bastando lembrar do valor de mercado das empresas Microsoft e Apple, além do valor da marca Coca Cola, como visto acima.

E é óbvio que, pelo intenso intercâmbio mundial dos produtos derivados da genialidade humana, a necessidade de proteção vai muito além dos limites territoriais do próprio Estado, de forma que, em 1.994, mais uma convenção internacional foi assinada no âmbito da Organização Mundial do Comércio, formando um conjunto de regras ao que se deu o nome de “Acordo Trips” (Trade Related Aspects Of Intellectual Property”.

O direito à proteção da criação intelectual na verdade tem um duplo aspecto ou uma dupla dimensão. De um lado, surge um direito eminentemente patrimonial concernente ao monopólio temporário de exploração econômica do bem imaterial e, de outro, tem-se um direito de personalidade, ou direito moral, já que a criação é projeção de um aspecto da personalidade – o intelecto.

Assim, tal como os demais direitos reais na coisa própria e alheia, “a propriedade intelectual se manifesta através de uma situação jurídica de poder imediato e exclusivo da vontade do titular sobre a coisa (a sua obra)...[23]

Além disso, a titularidade intelectual comporta uma divisão entre os direitos autorais, que estão relacionados com as obras artísticas, científicas e literárias, e com a chamada “propriedade industrial”[24], que trata das marcas, das invenções, dos modelos de utilidade, dos desenhos industriais etc.

A existência de dois ramos surgiu com base em um critério utilitário pautado no perfil de cada uma das criações, já que algumas delas, como as invenções e marcas, por exemplo, sempre se aplicaram mais intensamente à atividade industrial, tendo, por isso, a característica de reprodução em série. Já os direitos autorais seriam trabalhos mais de caráter artísticos e menos capitalistas.

Dessa forma, “as obras consideradas como artísticas e literárias tencionam fomentar a educação e a cultura, daí que a Lei n  º 9.615/98 abrange as mais diversas emanações da sensibilidade e criatividade humanas como a encenação, a arte plástica, a fotográfica, obras individuais e as bases de dados....[25]

Seja como for, o que há de comum entre os direitos autorais e à propriedade industrial é que, em ambos os casos, o titular ostenta um monopólio temporário para a exploração exclusiva da criação intelectiva.

Com o efeito, o artigo 5º, XXVII, dispõe que: “aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar;”

Sendo assim, o direito moral de autor – o aspecto extrapatrimonial do direito, ligado à estrutura de personalidade da pessoa (seu intelecto) é vitalício, pois não ultrapassa a vida do titular.

No entanto, o direito patrimonial de autor se transmite aos seus herdeiros pelo tempo que a lei fixar. Em nosso sistema, a lei que dispõe sobre os direitos autorais é a Lei nº 9.610/98, a qual, em seus artigos 41 a 44[26], estabelece, com algumas particularidades e ressalvas, que o monopólio de exploração econômica perdura pelo prazo de 70 (setenta) anos, a contar de 1º de Janeiro do ano seguinte ao óbito do autor, após o que cairá em domínio público.

Em suma, o titular de um direito autoral exerce basicamente os mesmos poderes ou faculdades previstos no artigo 1.228 do Código Civil, já que pode utilizar, fruir e dispor da obra, “bem como utilizar sua utilização ou fruição por terceiros, no todo ou em parte.[27]

Por fim, ressalta-se que os direitos autorais também conferem proteção aos chamados direitos conexos, que “os direitos dos sujeitos que gravitam em torno da esfera do autor, que trabalham a obra ou sobre ela sem que tenham sido seu criador intelectual. Nesse sentido, os direitos do intérprete/executante, que não cria a melodia ou a letra da canção, mas lhe deu nova roupagem, os direitos do produtos fonográfico, das empresas de radiodifusão.[28]

Já no outro extremo do que tratamos por titularidade intelectual está o direito de propriedade industrial. Como se observa no artigo 5º, XXIX, da CR/88, outorga-se um privilégio temporário de exploração em função do interesse social e desenvolvimento tecnológico e econômico do pais, vejamos:

XXIX - a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País;

Como dito acima, estou empregando a expressão em homenagem a uma terminologia já imbricada no cotidiano, mas que apresenta não só imprecisões técnicas (fala-se em titularidade quando o objeto é bem imaterial ou direito), como limitação de sentido, já que é óbvio que as invenções voltadas para a exploração do setor de serviços e do comércio também se incluem no âmbito da proteção.

A matéria está regulada pela Lei 9.279/96 e, no caso das invenções, o titular tem de obter uma carta patente expedida pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). A patente simboliza uma recompensa atribuída ao inventor pela inovação tecnológica obtida, que, no final das contas, pode beneficiar toda a coletividade. Ademais, confere-se ao titular um autêntico direito de propriedade, devido à possibilidade de exclusividade da exploração por certo período de tempo.

Com efeito, o prazo de exploração da patente é de 20 anos, contados do depósito, ou 10 anos, contados da concessão da patente, após o que a invenção cai em domínio público.

5.      Classificação da Propriedade

5.1.Propriedade, Domínio e Posse.

Para o autor Cristiano de Farias Chaves, só haverá propriedade se alguém exercer pelo menos um dos atributos e tiver o título. Quem tem todos os atributos, mas não tem título, tem domínio.

Diz-se que o direito de propriedade é o mais amplo de todos os direitos subjetivos. Mas é preciso deixar claro que o direito de propriedade exige, além desses 4 poderes, outros detalhes. Quem tem os quatro atributo e mais o título tem a propriedade; quem só tem os quatro atributos, mas não o título, tem o domínio e, por fim, que tem algum dos atributos tem a posse.

Há diferenças importantes entre propriedade e domínio. Por conta da oponibilidade erga omnes, o direito de propriedade é exercido perante pessoas (coletividade). Já o domínio não é exercido perante pessoas (coletividade), mas sobre a coisa. O domínio é uma relação material de submissão direta da coisa.

Assim, quem tem propriedade tem domínio, mas a recíproca não é verdadeira. Aquela pessoa que preenche todos os requisitos da usucapião não tem propriedade, porque não tem título, mas já tem domínio.

A diferença entre um e outro também é sentida no aspecto processual. Se eu quero defender a propriedade, o caminho é a ação reivindicatória. Por outro lado, se eu quero defender o domínio, a ação é publiciana.

Uma pergunta: A sentença de procedência de uma ação publiciana permite o registro em cartório do título? De forma alguma, porque a ação publiciana relaciona-se com domínio, e o conceito de domínio não se coaduna com título. A ação publiciana é meramente declaratória de domínio.

Mas se eu quero obter o título, devo recorrer à ação de usucapião, porque essa ação é declaratória de domínio e constitutiva de título. Diversamente da ação publiciana, que só declara o domínio. A maioria das pessoas nunca ouviu falar na ação publiciana, porque, no CC/16, domínio era sinônimo de propriedade.

5.2.Classificação Tradicional

Já o autor Flávio Tartuce apresenta uma classificação diferenciada que define algumas espécies ou categorias de propriedade a partir da utilização ou distribuição dos poderes ou faculdades. Assim, para Tartuce, a propriedade pode ser classificada da seguinte forma:
a)      Propriedade Plena ou Alodial – o proprietário tem consigo os atributos de gozar, usar, reaver e dispor da coisa. Todos esses caracteres estão em suas mãos de forma unitária, sem que terceiros tenham qualquer direito sobre a coisa.
b)      Propriedade Limitada ou Restrita – recai sobre a propriedade algum ônus, caso da hipoteca, da servidão ou usufruto; ou quando a propriedade for resolúvel, dependente de condição ou termo (art. 1.359 do CC). Alguns dos atributos da propriedade passam a ser de outrem, constituindo-se em direito real sobre coisa alheia.
No último caso, havendo a divisão entre os referidos atributos, o direito de propriedade é composto de duas partes destacáveis:
c)       Nua-propriedade – corresponde à titularidade do domínio, ao fato de ser proprietário e de ter o bem em seu nome. Costuma-se dizer que a nua-propriedade é aquela despida dos atributos do uso e da fruição (atributos diretos ou imediatos);
d)      Domínio útilcorresponde aos atributos de usar, gozar e dispor da coisa. Dependendo dos atributos que possui, a pessoa que o detém recebe uma denominação diferente: superficiário, usufrutuário, usuário, habitante, promitente comprador etc.
Por tal divisão, uma pessoa pode ser o titular (o proprietário) tendo o bem registrado em seu nome ao mesmo tempo em que outra pessoa possui os atributos de usar, gozar e até dispor daquele bem em virtude de um negócio jurídico, como ocorre no usufruto, na superfície, na servidão, no uso, no direito real de habitação, no direito do promitente comprador, no penhor, na hipoteca e na anticrese.
Ilustrando de forma mais profunda, no usufruto percebe-se uma divisão proporcional dos atributos da propriedade: o nu-proprietário mantém os atributos de dispor e reaver a coisa; enquanto que o usufrutuário tem os atributos de usar e fruir (gozar) da coisa.
Flávio Tartuce também chega a comentar a diferenciação feita por Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves sobre propriedade e domínio. Como se vê abaixo, Tartuce não concorda e até menciona o princípio da operabilidade para demonstrar que não justifica fazer a diferenciação entre conceitos tão próximos. Vejamos:
Para findar o tópico, é fundamental verificar o conceito de domínio, que para muitos é sinônimo de propriedade, tese a que se filia este autor. Todavia, há quem entenda de forma contrária, caso de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, que lecionam:
“O domínio é instrumentalizado pelo direito de propriedade. Ele consiste na titularidade do bem. Aquele se refere ao conteúdo interno da propriedade. O domínio, como vínculo real entre o titular e a coisa, é absoluto. Mas, a propriedade é relativa, posto ser intersubjetiva e orientada à funcionalização do bem pela imposição de deveres positivos e negativos de seu titular perante a coletividade. Um existe em decorrência do outro. Cuida-se de conceitos complementares e comunicantes que precisam ser apartados, pois em várias situações o proprietário – detentor da titularidade formal – não será aquele que exerce o domínio (v.g., usucapião antes do registro; promessa de compra e venda após a quitação). Veremos adiante que a propriedade recebe função social, não o domínio em si”.42
Como se pode notar, os conceitos de propriedade e de domínio são muito próximos, não se justificando, metodologicamente, as diferenciações expostas pelos juristas contemporâneos. E, como o Código Civil de 2002 adota o princípio da operabilidade, em um primeiro sentido de facilitação do Direito Privado, não há razões para a distinção.
Por outro lado, Caio Mario apresenta classificação mais simples e tradicional. Para este autor, a propriedade classifica-se em:

a)      Propriedade Plena (plena in re potestas). Opera-se quando todos os poderes estão centrados em uma pessoa.

b)      Propriedade Limitada: Resulta do desmembramento das faculdades. Com isso, podem-se formar outros direitos reais, como o usufruto. Neste caso, o titular do direito de propriedade permanece com o domínio eminente e o usufrutuário fica com o domínio útil.

Além desta divisão clássica entre propriedade plena e limitada, eu incluiria, também, a propriedade resolúvel.

c)      Propriedade resolúvel. (art. 1.359 e 1.360)

Art. 1.359. Resolvida a propriedade pelo implemento da condição ou pelo advento do termo, entendem-se também resolvidos os direitos reais concedidos na sua pendência, e o proprietário, em cujo favor se opera a resolução, pode reivindicar a coisa do poder de quem a possua ou detenha.

Art. 1.360. Se a propriedade se resolver por outra causa superveniente, o possuidor, que a tiver adquirido por título anterior à sua resolução, será considerado proprietário perfeito, restando à pessoa, em cujo benefício houve a resolução, ação contra aquele cuja propriedade se resolveu para haver a própria coisa ou o seu valor.

A propriedade resolúvel é aquela que pode ser extinta quer pelo advento de condição (evento futuro e incerto) ou pelo termo (evento futuro e certo), quer pela superveniência de uma causa capaz de destruir a relação jurídica. A categoria está inserida no capítulo que trata do Direito das Coisas, nos arts. 1.359 e 1.360 do CC, envolvendo muitas situações contratuais, como nas cláusulas de retrovenda (art. 505 a 508 do CC), de venda com reserva de domínio (art. 521 a 527) e na doação com cláusula de reversão (art. 547)[29]

Diante disso, conclui Caio Mario dizendo que o Código admite que a propriedade se resolva pelo implemento da condição ou pelo advento do termo, com efeito ex tunc, tal como enuncia o art. 1.359. Resolvendo-se por uma causa diversa, superveniente, gera efeitos ex nunc, isto é, produz consequências que não retroagem. Daí desdobrar-se o preceito desta maneira: a) resolvendo-se o domínio por motivo superveniente, diverso, portanto, do que prevê o art. 1.359, a resolução opera a partir do ato que a determinou; b) os direitos constituídos antes do acontecimento que gerou a resolução são válidos e eficazes, o que vale dizer que a propriedade adquirida anteriormente ao evento resolutório reputa-se perfeita; c) operada a resolução, a pessoa, em cujo favor efetuou-se, tem ação contra aquela outra cujo domínio se resolveu, para haver a própria coisa, e, não sendo mais possível, para obter o seu valor.

Assim, esquematicamente, pode-se dizer que esta espécie de propriedade se resolve de duas formas:

Pelo implemento da condição ou advento do termo (1.359)
Por uma causa diversa (motivo superveniente) (1.360)
Efeitos retroativos
Efeitos ex nunc

A referência a “motivo superveniente”, do teor do art. 1.360, significa a existência de uma causa resolutória que se não insere no próprio título, mas, ao revés, procede de causa posterior à transmissão da propriedade (Clóvis Beviláqua).

Imaginemos o exemplo da retrovenda. Durante o prazo máximo de 3 anos, o vendedor pode exercer o seu direito de retrato para reaver a coisa. A causa resolutória, inserida no próprio título (contrato) é essa (o exercício do direito de retrato). Mas vamos supor, por outro lado, que durante este prazo de 3 anos, o comprador originário tenha vendido o imóvel a terceiros.

Este terceiro pode perder a propriedade para o vendedor originário se este exercer o seu direito de retrato. Tem-se, aqui, a situação prevista no artigo 1.359. No entanto, se o vendedor originário falecer, por exemplo, durante o prazo de 3 anos, o novo comprador adquire a propriedade plena. Essa é a situação cogitada pelo artigo 1.360.

5.3.Propriedade Resolúvel (vídeo-aula Prof. Cristiano Chaves)

5.3.1.      Noções/conceito

É exceção à regra da perpetuidade da propriedade. De ordinário, toda propriedade é perpétua (é para sempre) e quando o titular morre, transmite-se para os herdeiros. Essa é a regra geral. Contudo, o CC resguarda a possibilidade de propriedade resolúvel.

A propriedade resolúvel tem data certa para terminar. É uma propriedade transitória, por tempo determinado. Essa transitoriedade se resolverá antes da transmissão para os herdeiros.

5.3.2.      Causas da Propriedade Resolúvel

No Brasil, a propriedade resolúvel pode ter duas causas:

a)      Causa originária (art. 1359)

É aquela, cujo título aquisitivo, já indica o momento de extinção. Já nasce para se extinguir. Ou melhor, a sua causa extintiva já está prevista no título aquisitivo. Se ela nasceu resolúvel, algum terceiro pode alegar boa fé, ou seja, que a desconhecia? Nenhum terceiro pode alegar boa fé. Exemplos:

è Art. 505 do Código Civil. Retrovenda. É a cláusula especial da compra e venda que permite ao vendedor comprar a coisa de volta, querendo, no prazo máximo de 3 anos, depositando o valor tanto por tanto. Durante esse prazo, o comprador tem propriedade resolúvel com causa originária, porque já estava prevista no título aquisitivo.

è Alienação Fiduciária em Garantia. Lembrar do financiamento de automóvel. Eu dou em garantia do empréstimo a propriedade do imóvel. O banco permanece como proprietário e possuidor indireto. A propriedade se extingue com a quitação do empréstimo. Toda propriedade fiduciária nasce resolúvel, pois sua causa extintiva já vem prevista originariamente.

b)     Causa derivada ou superveniente ou ad tempus (art. 1360)

A propriedade pode nascer perpétua e se tornar resolúvel por um fator superveniente. Nesse caso, a propriedade se extingue por uma causa não prevista no título. Em outras palavras, a propriedade nasceu para ser perpétua, mas uma causa posterior extingue essa propriedade de forma inesperada, sem prejuízo de terceiros de boa fé!

Um exemplo extraordinário para a compreensão:

è Art. 557 (Revogação da Doação Por ingratidão do Donatário). Lembrar do En. 33 da Jornada segundo o qual esse rol é exemplificativo.

A pessoa que recebeu em doação (e praticou o ato de ingratidão) transfere esse bem a terceiros. A sentença judicial que reconhece a ingratidão não pode prejudicar o direito desse terceiro. Assim, se a propriedade é resolúvel por causa superveniente, o terceiro de boa fé estará protegido e a extinção da propriedade não o atinge, devendo o interessado exercer o direito de regresso contra o antigo proprietário.

Já vício redibitório e evicção não geram propriedade resolúvel.

Para encerrar o estudo da propriedade resolúvel, duas frases:

è Extinta uma propriedade resolúvel com causa originária, extinguem-se com ela todos os direitos constituídos em sua pendência;

è Extinta uma propriedade resolúvel com causa superveniente, não se extinguem os direitos constituídos em sua pendência, protegendo terceiros de boa fé.

Exemplo:

Retrovenda é propriedade resolúvel com causa originária. A vende para B um imóvel com cláusula de retrovenda com prazo de 2 anos. Dentro do prazo, A exerce o direito de retrovenda. Antes, porém, B tinha dado o bem em hipoteca. Assim, quando A exerce o direito de retrovenda, extinguem-se a propriedade de B e a hipoteca do banco.

Por outro lado, na revogação da doação por ingratidão, se doador tiver dado o bem em hipoteca e, posteriormente, for decretada a revogação judicialmente, não se extingue a hipoteca.

5.4.Propriedade Fiduciária

A propriedade fiduciária é um direito real, embora não esteja presente explicitamente no rol do artigo 1.225. Afirma-se que ela se trata de um direito real por se tratar de uma modalidade especial de propriedade.

Segundo Álvaro Villaça de Azevedo, “esse negócio atípico sempre foi admitido em nossa jurisprudência com fundamento na fudúcia cum creditore, do Direito Romano.[30]

5.4.1.      Personagens do negócio fiduciário

Um dos mais notáveis exemplos de propriedade resolúvel com causa originária é a propriedade fiduciária, pela qual o devedor transfere ao credor, a título de garantia, a propriedade resolúvel de um bem móvel infungível (art. 1.361, CC).

Como o negócio produz efeitos desde a origem, tem-se que a condição à qual está sujeita a propriedade fiduciária é uma condição resolutiva.

Com efeito, há duas personagens neste esquema, que podem ser assim delineados:

è CREDOR FIDUCIÁRIO: TITULAR DA PROPRIEDADE RESOLÚVEL

è DEVEDOR FIDUCIANTE: POSSUIDOR DIRETO DO BEM

A propriedade resolúvel, sobre a qual pende condição resolutiva, cessa com o implemento do evento futuro e incerto (pagamento total do valor do financiamento).

Anota-se, inclusive, que não apenas bancos e instituições financeiras podem figurar na condição de credores fiduciários, mas toda e qualquer pessoa física ou jurídica.


Contrato de alienação fiduciária
Repasse do valor necessário à aquisição do bem
Contrato de compra e venda
 






A relação é geralmente triangular, mas nada impede que a propriedade fiduciária incida sobre bens que, mesmo antes do financiamento já pertenciam ao próprio devedor. Neste sentido, dispõe a Súmula 28 do STJ:

O contrato de alienação fiduciária em garantia pode ter por objeto bem que já integrava o patrimônio do devedor.

Ademais, o contrato de alienação fiduciária é formal, pois deve ser feito por escrito, por instrumento público ou particular, sendo necessária a descrição pormenorizada do bem dado em garantia. Além disso, é contrato bilateral e acessório, eis que só existe por conta de um contrato principal, que representa a divida do devedor fiduciante.

5.4.2.      Sistemas de Propriedade Fiduciária

O código civil é categórico ao dispor que o objeto deve ser necessariamente móvel e infungível, e a título de recordação, bem infungível é aquele que não pode ser substituído por outro de mesma espécie, quantidade ou qualidade.

Outra questão é se o bem, além de móvel e infungível, deve integrar o patrimônio de um terceiro ou do próprio devedor fiduciante. Em resposta, a súmula 28 do STJ não deixa dúvidas a respeito:

O contrato de alienação fiduciária em garantia pode ter por objeto bem que já integrava o patrimônio do devedor.

Seja como for, o tratamento da matéria dentro do Código Civil fez surgir dois sistemas de propriedade fiduciária que se distinguem em função do objeto. Tanto é assim que o artigo 1.368-A, alterado pela 10.931/04, dispõe que “As demais espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária submetem-se à disciplina específica das respectivas leis especiais, somente se aplicando as disposições deste Código naquilo que não for incompatível com a legislação especial. (Incluído pela Lei nº 10.931, de 2004)

a)      Sistema Geral do Código Civil (art. 1.361 a 1.368)

A peculiaridade deste sistema é que o objeto é necessariamente bem móvel e infungível e o credor pode ser qualquer pessoa física ou jurídica.

b)     Sistemas Especiais

Este sistema especial é composto por uma série de normas extravagantes, que se resumem nos seguintes regimes legais:

b.1)  Sistema do Mercado Financeiro e de Capitais Art. 66-B,da Lei 4.278/65, atualizados pela redação da Lei 10.931/04, que trata de propriedade fiduciária incidente em bens móveis fungíveis, cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou de títulos de crédito. Neste sistema, o credor necessariamente é uma instituição financeira.

b.2) Sistema do Financiamento Imobiliário (Lei 9.514/97)

5.4.3.      A busca e apreensão prevista no Decreto 911/69

Esta ação autônoma, de caráter satisfativo e cognição sumária, que ostenta rito célere e específico se aplica apenas à alienação fiduciária do mercado de capitais. Ou seja, pode ser utilizada apenas por bancos e instituições financeiras.

Neste sentido, já decidiu o STJ no REsp 1.101.375-RS:

2. A medida de busca e apreensão prevista no Decreto-Lei n.911/1969 consubstancia processo autônomo, de caráter satisfativo e de cognição sumária, que ostenta rito célere e específico com vistas à concessão de maiores garantias aos credores, estimulando, assim, o crédito e o fortalecimento do mercado produtivo.
3. O art. 8º-A do referido Decreto, incluído pela Lei n. 10.931/2004, determina que tal procedimento judicial especial aplique-se exclusivamente às seguintes hipóteses: (i) operações do mercado financeiro e de capitais; e (ii) garantia de débitos fiscais ou previdenciários. Em outras palavras, é vedada a utilização do rito processual da busca e apreensão, tal qual disciplinado pelo Decreto-Lei n. 911/1969, ao credor fiduciário que não revista a condição de instituição financeira lato sensu ou de pessoa jurídica de direito público titular de créditos fiscais e previdenciários.

No caso acima, uma determinada sociedade limitada recebeu, em garantia, a propriedade fiduciária de antena parabólica, aparelhagem de som, colchões e cantoneiras e tentou fazer a busca e apreensão pelo procedimento especial do Decreto 911/69. Como não tem legitimidade para esta ação especial, o credor fiduciário de bens móveis infungíveis (sistema do código civil) tem de se valer da ação de reintegração de posse.

5.4.3. Características da Propriedade Fiduciária

1ª Desdobramento da posse. Essa característica resulta da transferência da propriedade resolúvel e posse indireta do bem para o credor fiduciário. Por outro lado, o devedor permanece com a posse direta do bem, podendo em razão disso exercer as faculdades de uso e fruição, conforme a destinação da coisa, e também responde pelos riscos da perda ou deterioração do objeto. O devedor fiduciário é equiparado a um depositário da coisa.
Art. 1.363. Antes de vencida a dívida, o devedor, a suas expensas e risco, pode usar a coisa segundo sua destinação, sendo obrigado, como depositário:
I - a empregar na guarda da coisa a diligência exigida por sua natureza;
II - a entregá-la ao credor, se a dívida não for paga no vencimento.
Como o risco quanto ao perecimento do bem corre por conta do devedor fiduciante, a regra derroga o princípio geral do res perit dominus. Além de responder pelos riscos, o devedor ainda é responsável pelo pagamento dos impostos incidentes, multas, assim como pela responsabilidade civil.

2º Cláusula constituti. Aquele que era proprietário se converte, por força do mero consenso, em possuidor direto. A posse indireta foi adquirida pelo credor fiduciário por mera ficcção.

3º Propriedade resolúvel por se tratar de titularidade que já nasce com previsão de sua extinção diante da ocorrência do evento futuro e incerto (o pagamento integral da dívida).

4º DIREITO REAL DE GARANTIA EM COISA PRÓPRIA A propriedade fiduciária é um patrimônio de afetação em direto real de garantia em coisa própria.

A propriedade fiduciária apresenta mais vantagens se comparada aos demais direitos reais de garantia em coisas alheias. Assim, por exemplo, seu objeto é muito mais amplo do que o da hipoteca, que admite somente bens imóveis, navios e aeronaves.

Também ganha em dinamismo se comparado ao penhor, que exige a entrega da coisa móvel (tradição) para a constituição do direito real.

Outra importantíssima vantagem está na possibilidade do pedido de restituição, em caso de falência do devedor, o que dispensa o pedido de habilitação de crédito nos autos do juízo universal. Tal vantagem está prevista no artigo 7º do Dec. 911/69 e também no artigo 85 da Lei 11.101/05:

Art 7º Na falência do devedor alienante, fica assegurado ao credor ou proprietário fiduciário o direito de pedir, na forma prevista na lei, a restituição do bem alienado fiduciàriamente.

Art. 85. O proprietário de bem arrecadado no processo de falência ou que se encontre em poder do devedor na data da decretação da falência poderá pedir sua restituição.

5.4.4.      Constituição da Propriedade Fiduciária (art. 1.361,§1º)

A propriedade fiduciária se constitui mediante o registro do título aquisitivo no Cartório de Títulos e Documentos do domicílio do credor ou, em se tratando de veículos, na repartição competente para o licenciamento (DETRAN).

É o que prescreve o artigo 1.361,§1º do Código Civil:
Art. 1.361. Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor.
§ 1o Constitui-se a propriedade fiduciária com o registro do contrato, celebrado por instrumento público ou particular, que lhe serve de título, no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do devedor, ou, em se tratando de veículos, na repartição competente para o licenciamento, fazendo-se a anotação no certificado de registro.
Ressalta-se que o título deve cumprir um requisito essencial, próprio do penhor, da hipoteca e da anticrese (direitos reais de garantia) denominado especialização da garantia. Para tanto, o contrato deve fazer a descrição dos elementos essenciais do negócio jurídico e a individualização da coisa dada em alienação, assim como a época do pagamento do débito e a taxa de juros.
Art. 1.362. O contrato, que serve de título à propriedade fiduciária, conterá:
I - o total da dívida, ou sua estimativa;
II - o prazo, ou a época do pagamento;
III - a taxa de juros, se houver;
IV - a descrição da coisa objeto da transferência, com os elementos indispensáveis à sua identificação.
A falta da indicação desses requisitos caracteriza vício extrínseco, acarretando invalidade do direito real e impedimento para o registro no órgão competente.

Quanto à alienação fiduciária de veículo, o artigo 1.361,§1º deixa a entender, pela conjunção alternativa “ou”, que o bastaria o registro no DETRAN. No entanto, uma corrente doutrinária defende que, mesmo em se tratando de veículos, o contrato deveria ser registrado no Cartório de Títulos e Documentos do domicílio do devedor.

A inconstitucionalidade é no sentido de que o DETRAN é órgão integrante da estrutura do Poder Executivo, estando sujeito à fiscalização do governo Estadual. Já os Cartórios são fiscalizados pelo judiciário. Então não faria sentido permitir o registro apenas no Detran, pois o Poder Judiciário não teria competência para fiscalizar.

O fato é que a matéria é objeto de incidente de Repercussão Geral no STF (RE 611.639-RJ)

Ementa

VEÍCULOS AUTOMOTORES - GRAVAME - OBRIGATORIEDADE DO REGISTRO EM CARTÓRIO DE TÍTULOS E DOCUMENTOS - INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 1.361, § 1º, DO CÓDIGO CIVIL DECLARADA NA ORIGEM. Possui repercussão geral a controvérsia sobre a constitucionalidade do artigo 1.361, § 1º, do Código Civil no tocante à obrigatoriedade do registro, no cartório de títulos e documentos, do contrato de alienação fiduciária de veículos automotores, mesmo com a anotação no órgão de licenciamento.

Por se tratar a propriedade fiduciária de um direito real de garantia a falta de registro não confere publicidade a terceiros que, nessas situações, presumem-se de boa fé. Não é outra a conclusão da Súmula 92 do STJ: A terceiro de boa-fé não é oponível a alienação fiduciária não anotada no Certificado de Registro do veículo automotor.

Vale advertir, porém, que a ausência do registro não interfere na validade do contrato, mas sim na eficácia em relação a terceiros, conforme acertadamente já decidiu o STJ no REsp. 686.932.

5.4.5.      Obrigações do devedor fiduciante

a)      Exercício da posse conforme a destinação específica do bem

O devedor poderá exercer os poderes de uso e fruição sobre o bem, devendo zelar pela sua guarda na condição de depositário, assim como deve entregar a coisa, caso a dívida não seja paga (art. 1.363).

b)     Inadimplemento do devedor fiduciante

Aqui já começam a fase patológica, o descumprimento que frustra o projeto contratual. A primeira obrigação é imposta ao devedor fiduciante, a quem cabe entregar o bem ao credor, para que este possa converter a sua propriedade resolúvel em plena.

Para tanto, o credor vai vender o bem, judicial ou extrajudicialmente, e aplicar o saldo para quitar o débito em atraso. Havendo saldo em favor do devedor, deverá restituir.

Art. 1.364. Vencida a dívida, e não paga, fica o credor obrigado a vender, judicial ou extrajudicialmente, a coisa a terceiros, a aplicar o preço no pagamento de seu crédito e das despesas de cobrança, e a entregar o saldo, se houver, ao devedor.

O descumprimento da obrigação torna a posse injusta, cabendo ao credor tomar as providências para reaver a posse e propriedade plena do bem.

Registre-se, em primeiro lugar, que o credor não pode ficar com a propriedade plena do bem a partir do inadimplemento da dívida. Uma causa como essa – cláusula comissória – é nula de pleno direito – nos termos do artigo 1.365 e 1.428 do Código Civil.

Art. 1.365. É nula a cláusula que autoriza o proprietário fiduciário a ficar com a coisa alienada em garantia, se a dívida não for paga no vencimento.

Art. 1.428. É nula a cláusula que autoriza o credor pignoratício, anticrético ou hipotecário a ficar com o objeto da garantia, se a dívida não for paga no vencimento.
Parágrafo único. Após o vencimento, poderá o devedor dar a coisa em pagamento da dívida.
E seria realmente um absurdo uma cláusula como essa. Basta imaginar a hipótese de um credor que se apropriasse de um automóvel dado em garantia, no valor de R$ 40 mil, em função de um dívida de R$ 10 mil, apenas.

Portanto, o credor não pode ficar com a propriedade. Ele deve necessariamente realizar a venda judicial ou extrajudicial do bem e aplicar o valor da venda para amortizar o saldo devedor do contrato.

Mas como ele vai fazer isso?

Em primeiro lugar, seja qual for o sistema de propriedade fiduciária, afirma-se[31] que é imprescindível a notificação premonitória do devedor, como requisito para o ingresso da ação petitória, possessória, assim como a de busca e apreensão.

Neste particular, a Súmula 72 trata especificamente da busca e apreensão, veja-se:

A comprovação da mora é imprescindível à busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente.

Ademais, de acordo com o art. 2º,§2º do Dec. 911/1969, a notificação deve ser feita pelo Cartório de Títulos e Documentos ou pelo tabelionato de protestos.

Art 2º No caso de inadimplemento ou mora nas obrigações contratuais garantidas mediante alienação fiduciária, o proprietário fiduciário ou credor poderá vender a coisa a terceiros, independentemente de leilão, hasta pública, avaliação prévia ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, salvo disposição expressa em contrário prevista no contrato, devendo aplicar o preço da venda no pagamento de seu crédito e das despesas decorrentes e entregar ao devedor o saldo apurado, se houver.

§ 2º A mora decorrerá do simples vencimento do prazo para pagamento e poderá ser comprovada por carta registada expedida por intermédio de Cartório de Títulos e Documentos ou pelo protesto do título, a critério do credor.
Como se vê, a mora é ex re, mas a notificação funciona como uma condição de procedibilidade para o deferimento da liminar na ação de busca e apreensão.

Parece-me que a exigência da notificação também se aplica às alienações fiduciárias de bens imóveis infungíveis, reguladas pelo Código Civil, como requisito indispensável para a concessão da liminar da ação possessória ou da tutela antecipada em uma ação petitória.

Feita a notificação e ajuizada as ações para recuperação da posse direta do bem (petitória, possessória ou busca e apreensão), o devedor ainda teria direito à purga da mora.

Quanto à questão da purga da mora, o STJ editou, em abril de 2004, a Súmula 284:

A purga da mora, nos contratos de alienação fiduciária, só é permitida quando já pagos pelo menos 40% (quarenta por cento) do valor financiado.

Segundo a redação antiga do art. 3º, §1º do Dec. 911/69, o réu deveria purgar a mora tempestivamente, ou seja, no prazo de 3 dias, mediante o depósito de pelo menos 40% do preço financiado.

Todavia, com a nova redação dos parágrafos do art. 3º do Dec. 911, alterados pela Lei 10.931/04, fica a dúvida se ainda cabe a purgação da mora, já que a atual redação somente permite o pagamento do valor integral da dívida ou a apresentação da contestação, em 15 dias.

Em ambos os casos, os credores poderão optar, ao invés da recuperação da posse do bem, pela ação de execução para cobrar os valores em aberto.

No entanto, quando o adimplemento é considerável (substancial), já não existe esta “opção”, já que permitir a recuperação material de um bem, quando o devedor já quitou 31 de 36 parcelas caracterizaria o abuso de direito. Exatamente por isso, o STJ já firmou vários precedentes com expressa acolhida à teoria do adimplemento substancial, como retrata a hipótese abaixo:

1. É pela lente das cláusulas gerais previstas no Código Civil de 2002, sobretudo a da boa-fé objetiva e da função social, que deve ser lido o art. 475, segundo o qual "[a] parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos".
2. Nessa linha de entendimento, a teoria do substancial adimplemento visa a impedir o uso desequilibrado do direito de resolução por parte do credor, preterindo desfazimentos desnecessários em prol da preservação da avença, com vistas à realização dos princípios da boa-fé e da função social do contrato.
3. No caso em apreço, é de se aplicar a da teoria do adimplemento substancial dos contratos, porquanto o réu pagou: "31 das 36 prestações contratadas, 86% da obrigação total (contraprestação e VRG parcelado) e mais R$ 10.500,44 de valor residual garantido". Omencionado descumprimento contratual é inapto a ensejar a reintegração de posse pretendida e, consequentemente, a resolução do contrato de arrendamento mercantil, medidas desproporcionais diante do substancial adimplemento da avença.
4. Não se está a afirmar que a dívida não paga desaparece, o que seria um convite a toda sorte de fraudes. Apenas se afirma que o meio de realização do crédito por que optou a instituição financeira não se mostra consentâneo com a extensão do inadimplemento e, de resto, com os ventos do Código Civil de 2002. Pode, certamente, o credor valer-se de meios menos gravosos e proporcionalmente mais adequados à persecução do crédito remanescente, como, por exemplo, a execução do título.
5. Recurso especial não conhecido.
REsp. 1.051.270/RS

5.5.Propriedade Aparente

A propriedade aparente é projeção da teoria da aparência sobre os Direitos Reais. Todos sabem que o Direito brasileiro mantém um flerte contínuo com a teoria da aparência, porque a teoria da aparência é baseada na boa fé. (boa fé subjetiva, ou boa fé de conhecimento, visibilidade)

O Direito Brasileiro procura garantir efeitos à teoria da aparência. Esta é a jurisdicização de situações fáticas que despertam interesses alheios.

Não há como negar a incidência da teoria da aparência sobre o Direito de Propriedade. Ele se correlaciona com a teoria da aparência. E Orlando Gomes foi o primeiro autor a fazer essa relação. Quando se fala em propriedade aparente, é lógico, fala-se em proteção ao terceiro de boa fé, que negociou com o proprietário aparente.

Proprietário aparente é aquele que se apresenta aos olhos de todos como se legítimo proprietário fosse; é o que desperta em terceiros a impressão de ser o proprietário. E não apenas desperta o interesse, mas com eles celebra negócio jurídico como se proprietário fosse. Este é o proprietário aparente.

Atenção!! Apesar da falta de previsão legal no código, ou seja, do Código ser omisso, a jurisprudência protege o terceiro de boa fé que celebra negócio com o proprietário aparente. Exemplo: Herdeiro Aparente.

Imagine que um homem morreu sem deixar descendentes, nem cônjuge e nem companheiro. Logo, que recolherá a herança serão os ascendentes. Estes, então, venderam os bens a A. Quando realizada a venda, os ascendentes se apresentaram aos olhos de todos como se proprietário fosse. Todavia, posteriormente aparece C, que ingressa com pedido de investigação de paternidade cumulada com petição de herança. No caso, a sentença determina que todos os bens sejam transferidos ao herdeiro C.

No caso, A não será prejudicado em função da teoria da aparência e B se voltará contra os ascendentes, para receber o de direito. Assim, nota-se que a teoria da aparência visa resguardar a estabilidade das relações sociais.

5.6.Propriedade Superficiária

5.6.1.      Conceito

É o direito real pelo qual se confere a um terceiro as faculdades de usar e fruir a superfície de um imóvel pertencente a outrem. Advirta-se que os poderes de usar e fruir trazem a possibilidade de construir e plantar no imóvel.

5.6.2.      Direito Real de Superfície e Função Social.

O instituto guarda íntima relação com a função social, pois se o proprietário não tem condições financeiras para investir no imóvel ele estará em uma situação complicada. Isso porque o Estatuto da Cidade, Lei 10.257/01, impõe a obrigação de cumprir a função social, sob pena de parcelamento, edificação ou utilização compulsória, aplicação de IPTU progressivo e, em último caso, desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública.

Aliás, o Chefe do Executivo que não cumprir tais medidas incorre em ato de improbidade. Por tudo isso, o jeito é dar cumprimento à função social.

E um modo interessante de cumpri-la é constituindo um direito real de superfície. Em outros termos, pode-se dizer que o direito real de superfície é um mecanismo de cumprimento da função social, pois autoriza o seu proprietário a conferir a um terceiro a função social.

5.6.3.      Nota Histórica.

O direito real de superfície foi formulado na Europa, mais especificamente em Portugal. Nos países europeus, de dimensões territoriais muito menores que as do Brasil, a necessidade de cumprimento da função social é muito mais emergencial. No caso, observa-se que o instituto surgiu justamente como medida de cumprimento da função social.

5.6.4.      Direito Real de Superfície e sua regulamentação

O CC, lei geral e posterior, não revogou expressamente o Estatuto da Cidade, lei especial e anterior. Sendo assim, atualmente há um sistema duplo para regulamentar o instituto, sendo que, no exame de cada um dos diplomas, pode-se apontar três diferenças:

Estatuto da Cidade (art. 21)
Código Civil (art. 1.369)

Campo de aplicação da norma é exclusivo para imóveis urbanos;

O Direito pode ser concedido por tempo determinado ou não. E se a superfície for por tempo indeterminado, a mora é ex personae;

O direito de superfície abrange o subsolo e o espaço aéreo


Regulamentação voltada para imóveis urbanos e rurais (ou apenas rurais?)

O direito de superfície é sempre por tempo determinado.



Não abrange o subsolo e o espaço aéreo.

Do apanhado acima, pode-se afirmar que o direito de superfície do Estatuto da Cidade é mais amplo do que o do Código Civil.

5.6.5.      Direito de Sobrelevação

Aliás, no momento em que se diz que o direito de superfície, no Estatuto da Cidade, abrange o subsolo e espaço aéreo correspondente, diz-se que o Estatuto da Cidade admite o direito de sobrelevação, também conhecido como “direito de lage”

Direito de superfície sobre a lage!

5.6.6.      Características do Direito Real de Superfície

a)      Constituição gratuita ou onerosa

Aliás, no silêncio das partes, presume-se gratuito, nos termos do art. 1370 do CC. E quando for oneroso, a contraprestação recebe o nome de canon ou solarium. A periodicidade e extensão da prestação são fixadas pelas partes, no exercício da autonomia privada. 

b)     Pagamento dos tributos

Salvo disposição contrária, o responsável pelo pagamento dos tributos é o proprietário superficiário. Sobre o assunto, ver o Enunciado 94 da Jornada.

c)      Exige registro para a Constituição

Depende de registro do ato constitutivo, por ato inter vivos ou causa mortis. Mas tanto em um caso, como no outro, exige-se o registro no cartório, para a produção de efeitos contra terceiros. Além da constituição, pelo registro, vem se admitindo a possibilidade de constituição por cisão do imóvel. Neste sentido, ver o Enunciado 250 da Jornada.

Finalmente, salienta-se a possibilidade de constituição da superfície por usucapião.

d)     Por tempo Determinado ou Não

A característica é exclusiva dos imóveis urbanos, que são regulados pelo Estatuto da Cidade.

e)      Admite cessão a terceiro por ato inter vivos ou causa mortis.

Na hipótese de cessão por ato oneroso, dispõe o p. único do artigo 1372, que não será devido nenhum pagamento ao proprietário, cria-se verdadeira diáspora entre superfície e enfiteuse, no qual se exige o recolhimento do laudêmio na transferência. Portanto, o proprietário não tem direito de receber nenhuma parcela.

Ainda sobre o poder de livre disposição, questiona-se se o superficiário pode dar em garantia o seu direito real de superfície. Neste sentido, o Enunciado 249 da Jornada fixou entendimento de que é possível sim a constituição de direitos reais de gozo e garantia sobre a propriedade superficiária. Por exemplo: hipotecar a propriedade superficiária.

f)       Constitui patrimônios distintos, separados, entre o solo em si mesmo e os bens superficiários.

O proprietário tem o solo e o superficiário os bens da superfície. Assim, é possível a penhora dos bens do superficiário (com exclusão do solo) e vice-e-versa. Neste sentido, conferir o Enunciado 321 da Jornada. Esse é um grande atrativo do direito de superfície, pois cada um responde pelo seu patrimônio. Há uma divisão muita clara entre o solo e os bens superficiários.

g)      Direito Recíproco de Preferência (art. 1373)

Vale tanto para o proprietário como para o superficiário. Assim, se um deles quiser vender a sua fração patrimonial, deve observar o direito de preferência do outro. Essa disposição tende para a extinção da superfície e consolidação da propriedade. Inclusive, como se pode perceber, o art. 1373 estabelece o direito de preferência, mas não prescreve o modo do exercício desse direito. Segundo Cristiano chaves, o direito é exercido mediante notificação judicial ou extrajudicial com prazo de 30 dias.

Se a cessão ou venda for realizada sem a observância da regra, o ato será ineficaz perante o titular preterido, o qual terá o prazo decadencial de 180 dias para promover a ação de adjudicação compulsória, prazo este que começa a fluir a partir do conhecimento do ato (teoria da actio nata).

Nesta ação de adjudicação compulsória, há um litisconsórcio ativo necessário entre o prejudicado e o adquirente. Um detalhe: se a alienação for gratuita, não há que se falar em direito de preferência.

5.6.7.      Comentários Finais

a)      Mora ex re / mora ex personae

A mora será ex re (automática) quando a superfície é por tempo determinado. E quando for por prazo indeterminado (mas determinável) a mora é ex personae (constituída por notificação)

b)     A Situação dos Bens Superficiários com a Extinção do Direito Real de Superfície.

Salvo disposição em sentido contrário, todos os bens superficiários pertencerão ao proprietário, sem qualquer indenização. A superfície é uma realidade transitória para viabilizar o cumprimento da função social.

c)      Direito Real de Superfície constituído por Pessoa Jurídica de Direito Público.

É regida pelo Código Civil.

6.      Características do Direito de Propriedade

a)      Caráter absoluto. O proprietário pode desfrutar da coisa como bem entender, A propriedade deve ser relativizada se encontrar pela frente outro direito fundamental protegido pela Constituição. Por isso é que se pode dizer que a propriedade é um direito absoluto, regra geral, mas que pode e deve ser relativizado em muitas situações.
b)      Direito Exclusivo. Exclusiva no sentido de que o direito do proprietário afasta o de qualquer pessoa. Não se tratando de condomínio, o bem pertence única e exclusivamente ao seu titular.[32]

A propriedade, como expressão da senhoria sobre a coisa, é excludente de outra senhoria sobre a mesma coisa, é exclusiva: plures eamdem rem in solidum possidere non possunt. Só acidentalmente vige a copropriedade ou condomínio, como oportunamente veremos. A propriedade é livre de restrições e de coparticipação jurídica.[33]
S
c)      Direito Perpétuo. O direito de propriedade permanece independentemente do seu exercício, enquanto não houver causa modificativa ou extintiva, sejam elas de origem legal ou convencional. A propriedade, por tal característica, pode ser comparada a um motor em constante funcionamento, que não para, em regra (moto contínuo), a não ser que surja um fato novo que interrompa o seu funcionamento.
d)     Direito Elástico. característica que é atribuída, na doutrina nacional, a Orlando Gomes, a propriedade pode ser distendida ou contraída quanto ao seu exercício, conforme sejam adicionados ou retirados os atributos que são destacáveis.44 Na propriedade plena, o direito se encontra no grau máximo de elasticidade, havendo uma redução nos direitos reais de gozo ou fruição e nos direitos reais de garantia.

Já Caio Mario demonstra que a característica da elasticidade é atribuída a Serpa Lopes. Era este autor, na verdade, que chamava a propriedade de elástica, e o fazia porque a propriedade tem por objeto não apenas bens corpóreos, mas também se estende aos direitos e aos bens incorpóreos. A elasticidade, portanto, não se relaciona com o desmembramento dos atributos, mas sim com a vasta amplitude de seu objeto. Nas palavras do próprio Caio Mario:
Dentro de nossos sistemas não vemos lugar para a controvérsia. O que ocorre é mera questão de terminologia, como observam Ruggiero e Maroi, ao dizerem que se a rigor, a propriedade compreende apenas as coisas corpóreas, estende-se, entretanto, o conceito dominial aos direitos. A linguagem corrente, não apenas popular ou literária, mas igualmente a jurídica, não sofre pelo fato de se levar a noção do direito de propriedade aos bens incorpóreos. Tudo isto levou Serpa Lopes a qualificar de elástico o conceito de propriedade.
É certo que, em puro rigor, a condição de sujeito de direito sobre bens incorpóreos se designa por outros apelidos. É certo, também, que os direitos de autor na atualizada revisão terminológica e conceitual desbordam da relação dominial. Mas à amplitude semântica do vocabulário jurídico não repugna designar a titularidade dos direitos sobre bens incorpóreos como “propriedade”.[34]
e)      Direito Complexo. A complexidade tem relação com as diversas abordagens, acepções, características, sentidos que a propriedade tem, e principalmente decorre da relação que a propriedade tem com os seus atributos.
f)       Direito Fundamental. Não se pode esquecer que a propriedade é um direito fundamental, pelo que consta do art. 5.º, XXII e XXIII, da Constituição Federal. Esse caráter faz que a proteção do direito de propriedade e a correspondente função social sejam aplicados de forma imediata nas relações entre particulares, pelo que consta do art. 5.º, § 1.º, do Texto Maior (eficácia horizontal dos direitos fundamentais). Em reforço, o direito de propriedade pode ser ponderado frente a outros direitos tidos como fundamentais, caso da dignidade humana (art. 1.º, III, da CF/1988), particularmente naqueles casos de difícil solução (técnica de ponderação).

7.      Função Social e Sócioambiental da Propriedade.

7.1.Conceito e Parâmetros

Para Flávio Tartuce, o artigo 1.228,§1º é um dos mais importantes do Código Civil, pois consagra a função social como princípio orientador da propriedade, além de representar a principal limitação deste direito.

§ 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.

Este mesmo autor ainda cita lições de outros renomados juristas, a começar por Leon Diguit, para quem a propriedade já não é o direito subjetivo do indivíduo, mas uma função social a ser exercida pelo detentor da riqueza”.

Na mesma linha, a observação de Carlos Alberto Dabus Maluf:

Ao antigo absolutismo do direito, consubstanciado no famoso jus utendi et abutendi, contrapõe-se, hoje, a socialização progressiva da propriedade – orientando-se pelo critério da utilidade social para maior e mais ampla proteção aos interesses e às necessidades comuns

Em arremate, Orlando Gomes:

“Estabelecidas essas premissas, pode-se concluir que pela necessidade de abandonar a concepção romana da propriedade, para compatibilizá-la com as finalidades sociais da sociedade contemporânea, adotando-se, como preconiza André Piettre, uma concepção finalista, a cuja luz se definam as funções sociais desse direito. No mundo moderno, o direito individual sobre as coisas impõe deveres em proveito da sociedade e até mesmo no interesse de não proprietários. Quando tem por objeto bens de produção, sua finalidade social determina a modificação conceitual do próprio direito, que não se confunde com a política de limitações específicas ao seu uso. A despeito, porém, de ser um conceito geral, sua utilização varia conforme a vocação social do bem no qual recai o direito – conforme a intensidade do interesse geral que o delimita e conforme a sua natureza na principal rerum divisio tradicional. A propriedade deve ser entendida como função social tanto em relação aos bens imóveis como em relação aos bens móveis”.

Assim, a propriedade deve sempre atender aos interesses sociais, ao que almeja o bem comum, evidenciando-se uma destinação positiva que deve ser dada à coisa. Além disso, a função social deve ser compreendida com uma dupla intervenção: limitadora e impulsionadora. Quem explica cada uma delas é José de Oliveira Ascensão:

“como se deduz das próprias expressões, no primeiro caso, a lei pretenderia apenas manter cada titular dentro de limites que se não revelassem prejudiciais à comunidade (intervenção limitadora), enquanto que no segundo interviria activamente, fomentaria, impulsionaria, de maneira a que de uma situação de direito real derivasse um resultado socialmente mais valioso (função impulsionadora). Esta distinção é útil para a compreensão do material legislativo. Nomeadamente, podemos verificar com facilidade que, enquanto no século passado a lei quase se limitava a certo número de intervenções de caracter restritivo, agora multiplicam-se as intervenções impulsionadoras, de modo a aumentar o proveito que socialmente se pode extrair do bem”

Mas como devemos agir para cumprir a função social? Há algum parâmetro normativo para isso? Quanto aos parâmetros, o artigo 186 da Constituição, que trata da propriedade rural ou agrária, estabelece alguns parâmetros, vejamos:

a) Aproveitamento racional e adequado da propriedade.
b) Utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente.
c) Observância das disposições que regulam as relações de trabalho.
d) Exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

5.2. Aplicações Práticas. Caso da Favela Pullman.

Trata-se de um caso emblemático de aplicação da função social da posse e da propriedade. Segue um breve resumo do ocorrido:

A favela Pullman localiza-se na zona sul da cidade de São Paulo, e nela vivem milhares de famílias. A favela tem origem em um antigo loteamento, de 1955, que não teve o devido destino, por muitos anos, por parte dos seus proprietários, sendo invadida e ocupada paulatinamente. Após anos e a plena ocupação da área e a favelização, os proprietários de alguns terrenos ocupados ingressaram com ação reivindicatória, que foi julgada procedente em primeira instância. Consta dos autos que tais proprietários adquiriram a área entre 1978 e 1979 e que a ação reivindicatória foi proposta em 1985. A sentença repeliu a alegação de usucapião dos ocupantes e condenou os réus à desocupação da área, sem qualquer direito de retenção por benfeitorias e devendo pagar indenização pela ocupação desde o ajuizamento da demanda.
Os ocupantes apelaram então ao Tribunal de Justiça de São Paulo, pretendendo caracterizar a existência da usucapião especial urbana, pois incontestavelmente todos já viviam no local há mais de cinco anos, e ocupavam áreas inferiores a 250 m2, não possuindo qualquer um deles outra propriedade imóvel. Alegaram, portanto, a aplicação do instituto previsto no art. 1.240 do CC/2002 e que constava do art. 183 da CF/1988, a usucapião especial ou constitucional urbana.
Ainda em sede de recurso, os ocupantes, subsidiariamente, pretenderam o reconhecimento da boa-fé e, consequentemente, do direito de retenção por benfeitorias. O TJSP deu provimento à apelação dos réus, para julgar improcedente a ação, invertidos os ônus sucumbenciais. Essa decisão revolucionária teve como relator o Desembargador José Osório de Azevedo Júnior. Destaque-se o seguinte trecho da decisão, com correto preenchimento da função social da propriedade:

O voto do Desembargador José Osório de Azevedo Júnior merece especial atenção, pois a função social foi entendida como atributo ou elemento integrante do próprio conteúdo do direito de propriedadade e não simplesmente uma limitação externa.

“O atual direito positivo brasileiro não comporta o pretendido alcance do poder de reivindicar atribuído ao proprietário pelo art. 524 do CC. A leitura de todos os textos do CC só pode se fazer à luz dos preceitos constitucionais vigentes. Não se concebe um direito de propriedade que tenha vida em confronto com a Constituição Federal, ou que se desenvolva paralelamente a ela. As regras legais, como se sabe, se arrumam de forma piramidal. Ao mesmo tempo em que manteve a propriedade privada, a CF/1988 a submeteu ao princípio da função social (arts. 5.º, XXII e XXIII; 170, II e III; 182, § 2.º; 184; 186 etc.). Esse princípio não significa apenas uma limitação a mais ao direito de propriedade, como, por exemplo, as restrições administrativas, que atuam por força externa àquele direito, em decorrência do poder de polícia da Administração. O princípio da função social atua no conteúdo do direito. Entre os poderes inerentes ao domínio, previstos no art. 524 do CC (usar, fruir, dispor e reivindicar), o princípio da função social introduz um outro interesse (social) que pode não coincidir com os interesses do proprietário. Veja-se, a esse propósito, José Afonso da Silva, Direito constitucional positivo, 5. ed., p. 249-250, com apoio em autores europeus. Assim, o referido princípio torna o direito de propriedade, de certa forma, conflitivo consigo próprio, cabendo ao Judiciário dar-lhe a necessária e serena eficácia nos litígios graves que lhe são submetidos. (...). 10 – No caso dos autos, o direito de propriedade foi exercitado, pelos autores e por seus antecessores, de forma antissocial. O loteamento – pelo menos no que diz respeito aos nove lotes reivindicados e suas imediações – ficou praticamente abandonado por mais de 20 (vinte) anos; não foram implantados equipamentos urbanos; em 1973, havia árvores até nas ruas; quando da aquisição dos lotes, em 1978/9, a favela já estava consolidada. Em cidade de franca expansão populacional, com problemas gravíssimos de habitação, não se pode prestigiar tal comportamento de proprietários”

Os proprietários interpuseram Recurso Especial, mas o STJ manteve a decisão do TJSP. Apenas alguns fundamentos mudaram. O STJ, por exemplo, entendeu que houve perda da propriedade por abandono. De toda a forma, trata-se de um caso valioso  que concretiza a aplicação da função social.

“Ação reivindicatória. Terrenos de loteamento situados em área favelizada. Perecimento do direito de propriedade. Abandono. CC, arts. 524, 589, 77 e 78. Matéria de fato. Reexame. Impossibilidade. Súmula 7-STJ. I. O direito de propriedade assegurado no art. 524 do CC anterior não é absoluto, ocorrendo a sua perda em face do abandono de terrenos de loteamento que não chegou a ser concretamente implantado, e que foi paulatinamente favelizado ao longo do tempo, com a desfiguração das frações e arruamento originariamente previstos, consolidada, no local, uma nova realidade social e urbanística, consubstanciando a hipótese prevista nos arts. 589 c/c os arts. 77 e 78, da mesma lei substantiva. II. ‘A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial’ – Súmula 7-STJ. III. Recurso especial não conhecido” (REsp 75.659/SP, Quarta Turma, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, Recorrente: Aldo Bartholomeu e outros, Recorrido: Odair Pires de Paula e outros, data da decisão 21.06.2005).

Em conclusão, Flávio Tartuce esclarece que a decisão é revolucionária por introduzir a função social no próprio conceito de propriedade. E concluiu que quem não cumpre com essa função social não tem o domínio, não havendo sequer legitimidade ativa para a ação reivindicatória. A função social ganha um sentido positivo, pois deve ser dada uma utilidade coletiva à coisa.


[1] Expressão utilizada por Cesare Beccaria.
[2] LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil Constitucional in TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite. Manual de Teoria Geral do Direito Civil. Direito Civil Constitucional. Editora Del Rey. Belo Horizonte: 2011. p. 53.
[3] FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. 7ª Edição. Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro: 2011. p. 195.
[4] Opus cit. p. 194.
[5] Opus cit. p. 196.
[6] Opus cit. p. 196.
[7] PEREIRA, Caio Mário Silva. Instituições de Direito Civil - Vol. IV - Direitos Reais, 22ª edição. Forense, 03/2014. VitalBook file.
[8] Assim dispunha o §903 do BGB. “O proprietário de uma coisa pode, sempre que a lei ou o direito de um terceiro não se opuser, dispor da coisa à sua vontade e excluir outros de qualquer intromissão.” (Opus Cit. p. 197)
[9] As sesmarias eram terrenos incultos e abandonados, entregues pela Monarquia portuguesa, desde o século XII, às pessoas que se comprometiam a colonizá-los dentro de um prazo previamente estabelecido.
A doação dessas terras encontrava motivo na necessidade que o governo lusitano tinha de povoar os muitos territórios retomados dos muçulmanos no período conhecido como Reconquista. Essa expulsão dos árabes pelos cristãos iniciou-se no século XI e terminou por volta do século XV. (DINIZ, Mônica. Sesmarias e Posse de Terras: política fundiária para assegurar a colonização brasileira. Revista Histórica. 02/06/2005. Disponível em: http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao02/materia03/. Acesso em 14/09/14.

[10] TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil - Volume Único, 4ª edição. Método, 12/2013. VitalBook file.
[11] PEREIRA, Caio Mário Silva. Instituições de Direito Civil - Vol. IV - Direitos Reais, 22ª edição. Forense, 03/2014. VitalBook file.

[12] CHAVES, Cristiano de Farias. ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. 7ª Edição. Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro: 2011. p. 200.
[13] Opus cit. p. 199.
[14] Art. 1.276. O imóvel urbano que o proprietário abandonar, com a intenção de não mais o conservar em seu patrimônio, e que se não encontrar na posse de outrem, poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar, três anos depois, à propriedade do Município ou à do Distrito Federal, se se achar nas respectivas circunscrições.
[15] PENTEADO, Luciano de Camargo Penteado. Direito das Coisas. 2ª Edição. Revista dos Tribunais. 2012. P. 173.
[16] AZEVEDO, Álvaro Villaça.  Curso de Direito Civil. Direito das Coisas. Ed. Atlas. São Paulo; 2014, p. 40.
[17] Art. 1.412. O usuário usará da coisa e perceberá os seus frutos, quanto o exigirem as necessidades suas e de sua família.
[18] Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
IV - utilizar tributo com efeito de confisco;
Art. 243. As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 81, de 2014)
Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei.  (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 81, de 2014)


[19] CHAVES, Cristiano de Farias. ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. 7ª Edição. Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro: 2011. p. 200.
[20] MAMEDE, Gladston. O Direito Empresarial Brasileiro. TvWeb Atlas. disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=uPtvnrPzehI. Acesso em: 15/09/14.
[21] CHAVES, Cristiano de Farias. ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. 7ª Edição. Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro: 2011. p. 201.
[22] CHAVES, Cristiano de Farias. ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. 7ª Edição. Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro: 2011. p. 203.
[23] CHAVES, Cristiano de Farias. ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. 7ª Edição. Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro: 2011. p. 204.
[24] Ou, de forma mais técnica, “Títularidade industrial”. Decidi manter o nome por conta da costume já consagrado do emprego do termo propriedade.
[25] CHAVES, Cristiano de Farias. ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. 7ª Edição. Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro: 2011. p. 208.
[26] Art. 40. Tratando-se de obra anônima ou pseudônima, caberá a quem publicá-la o exercício dos direitos patrimoniais do autor.
Art. 41. Os direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subseqüente ao de seu falecimento, obedecida a ordem sucessória da lei civil.
Parágrafo único. Aplica-se às obras póstumas o prazo de proteção a que alude o caput deste artigo.
Art. 42. Quando a obra literária, artística ou científica realizada em co-autoria for indivisível, o prazo previsto no artigo anterior será contado da morte do último dos co-autores sobreviventes.
Parágrafo único. Acrescer-se-ão aos dos sobreviventes os direitos do co-autor que falecer sem sucessores.
Art. 43. Será de setenta anos o prazo de proteção aos direitos patrimoniais sobre as obras anônimas ou pseudônimas, contado de 1° de janeiro do ano imediatamente posterior ao da primeira publicação.
Parágrafo único. Aplicar-se-á o disposto no art. 41 e seu parágrafo único, sempre que o autor se der a conhecer antes do termo do prazo previsto no caput deste artigo.
Art. 44. O prazo de proteção aos direitos patrimoniais sobre obras audiovisuais e fotográficas será de setenta anos, a contar de 1° de janeiro do ano subseqüente ao de sua divulgação.

[27] SILVA, José Afonso da apud CHAVES, Cristiano de Farias. ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. 7ª Edição. Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro: 2011. p. 204.
[28] NERY JR, Nelson apud CHAVES, Cristiano de Farias. ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. 7ª Edição. Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro: 2011. p. 204.
[29] TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil - Volume Único, 4ª edição. Método, 12/2013. VitalBook file.

[30] AZEVEDO, Álvaro Villaça...Direito das Coisas. p. 119.
[31] PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das Coisas. p. 537.
[32] Art. 1.231. A propriedade presume-se plena e exclusiva, até prova em contrário.
[33] PEREIRA, Caio Mário Silva. Instituições de Direito Civil - Vol. IV - Direitos Reais, 22ª edição. Forense, 03/2014. VitalBook file.

[34] PEREIRA, Caio Mário Silva. Instituições de Direito Civil - Vol. IV - Direitos Reais, 22ª edição. Forense, 03/2014. VitalBook file

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